Eu nasci em 1972, um dos períodos mais sanguinários da ditadura militar. Por motivos óbvios, não tenho lembranças daquele período. Minhas primeiras memórias políticas são do movimento pelas Diretas Já, na década de 1980. Eu vivi, aí sim, as consequências daqueles 21 anos de governo. O Brasil legado aos civis pelos militares era coalhado de uma corrupção endêmica (você era obrigado a pagar propina até por uma linha telefônica). Tinha ainda inflação galopante, queda de confiança e caos. A jovem democracia que se seguiu, por isso, viveu tempos tortuosos. Enfrentou a morte do primeiro presidente civil eleito, seguida de José Sarney, hiperinflação, Fernando Collor e o pior, o fantasma da tutela militar, sempre a ameaçar novo golpe. Isso porque faltou cadeia.
O golpe militar de 1964, por isso, chega aos 60 anos no divã, sem que nunca um militar que tenha atentado contra os direitos humanos tenha tido, como consequência, a cadeia. A anistia ampla e irrestrita, cunhada nos últimos anos do regime, aniquilou a chance de o país passar a limpo o seu passado, como ocorreu na Argentina e no Chile. E como isso não foi feito, não raro surge um ou vários militares vociferando os seus golpismos. Por vezes, isso ocorre às claras, como no caso do general Villas Boas, em 2018, com intuito de amedrontar os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e beneficiar o então pré-candidato à presidência, Jair Bolsonaro (PL). Outras tantas, de forma velada.
A falta de punição pelos crimes do passado encoraja fardados pouco afeitos à democracia. E eles são muitos. Quase nos levaram a outro golpe, nos primeiros dias de 2023, quando se buscava impedir a posse do presidente Lula (PT). Uma coragem vinda da impunidade e da imposição do medo. Segundo a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos da SEDH-PR, 191 brasileiros que resistiram à ditadura foram mortos, 210 estão até hoje desaparecidos e foram localizados apenas 33 corpos, totalizando 434 militantes mortos e desaparecidos.
Qualquer pessoa que tenha acesso aos números e histórias, é capaz de dizer que aquela madrugada de 31 de março de 1964, quando o general Olímpio Mourão Filho, então comandante da 4ª Região Militar, em Juiz de Fora, marchou para depor o presidente João Goulart foi o início de uma coisa horrível. E foi, mas não para todo mundo. O golpe foi vantajoso para militares e familiares. Existem hoje, no Brasil, proporcionalmente, mais generais que nos Estados Unidos, a nação militar mais poderosa do planeta. Temos o mesmo número deles na ativa, 175, sendo que a população americana é muito maior. E, além disso, existem ainda quatro generais de pijama (aposentados) para cada um da ativa.
Não para por aí. São gastos todos os anos R$ 3,7 bilhões só de aposentadorias e pensões. E aí você inclui filhas de militares não casadas (mesmo as que vivam maritalmente), viúvas e órfãos. Mas não apenas isso, há inovações. Uma delas é a existência das viúvas de mortos-vivos. É o caso do ex-major Ailton Barros, preso ano passado acusado de falsificar atestados de vacina do círculo pessoal do seu amigo Jair Bolsonaro. Ele havia sido expulso do Exército por atropelar colegas de farda de propósito e fazer campanha eleitoral dentro da Vila Militar. Barros perdeu a patente, mas não a boquinha. A mulher dele passou a receber pensão, apesar de o marido não habitar o mundo dos mortos.
Os amantes do período militar podem ter se revoltado pela citação, acima, de “corrupção no período” e feito um paralelo com os dias atuais. Sim, a corrupção continua sendo uma praga a ser combatida no país, mas já foi bem pior na época em que quem denunciasse morria. Projetos como Transamazônica, Angra e Itaipu “terminaram” muito mais caros que o planejado. Estima-se que Itaipu custou dez vezes mais. O diplomata José Jobim inventou de fazer um dossiê com denúncias logo após a posse do general João Figueiredo, em 1979. Ele foi encontrado morto uma semana depois de revelar a existência do documento. Foi “suicidado”.
E tudo isso foi varrido para debaixo do tapete. Passados 60 anos, os civis no poder ainda temem pelo risco de um nebuloso repeteco. O presidente Lula proibiu manifestações oficiais do governo sobre o período recente mais sombrio do país. Teme melindrar a tênue relação com os fardados. Parte deles, nos estertores do governo Bolsonaro planejou, torceu ou foi omisso com atitudes golpistas. O 8 de janeiro de 2023 mostrou em grau máximo que por pouco não fomos enredados por outra ditadura. Planejamento e tentativa as provas mostram que houve. O que faltou foi apoio de dois dos três comandantes das Forças.
O novo regime não teria apoio internacional e claramente morreria pouco depois de dado o golpe. Isso foi manifestado pelos Estados Unidos e países europeus. Provavelmente haveria punição para os golpistas por vivermos em um país um pouquinho melhor que aquele de 1964. Mas essa reação deveria ter ocorrido bem antes.
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